fbpx

De Como a Catarina Aprendeu a Ordenar Leilões

Conheça a história de como a Catarina aprendeu a ordenar livros de leilões.

Uma das tarefas necessárias à organização de leilões é colocar os livros na estante pela ordem que consta no catálogo. Tradicionalmente, os catálogos são ordenados de acordo com critérios específicos, que, grosso modo, correspondem a uma ordenação alfabética por apelido do autor ou, na sua ausência, pelo título.

Ordenar livros a partir dos seus frontispícios é um trabalho bastante moroso e pouco prático. No nosso caso, preferimos fazer todos os verbetes por ordem aleatória, ordenando depois através do software de acordo com critérios pré-definidos, fazendo-lhe uma verificação e correcção.

Significa que, depois de todos os verbetes estarem feitos, é preciso reordenar de acordo com o catálogo. Para isso usamos dois números, o primeiro, do verbete e o segundo, do catálogo. Devido à natureza bastante irregular dos títulos – uns brochuras de poucas páginas, outros grossos in-fólios de 20 volumes – é pouco prudente ir colocando na estante, especialmente se as estantes disponíveis forem poucas ou à justa. Irá quase de certeza resultar na necessidade de deslocar um vasto conjunto de títulos para se encontrar espaço no meio da prateleira certa.

Ordenar os livros de um catálogo foi uma das primeiras tarefas específicas que a Catarina teve de fazer. Habituada a receber produtos e colocá-los na estante com determinado método, julgou que usá-lo para os livros seria igualmente eficaz e seguro.

Com anos de experiência na profissão, já com muitos milhares de livros ordenados no currículo, o Nuno deu-lhe algumas orientações e avisos totalmente ignorados. Ao antecipar o cataclismo, os quase quinze anos de experiência de casamento permitiram ainda um breve aviso, saindo de mansinho para se dedicar à colacção de um outro título que, previa, não iria terminar.

Passaram poucos minutos e a catástrofe aconteceu. No chão do armazém estava uma pilha de 5 volumes in-oitavo com o número 6 ou 7, não sabemos precisar, para colocar na primeira prateleira de uma estante sem um milímetro livre. A única solução seria deslocar algumas centenas de títulos já belamente ordenados e prontos.

A Catarina estava em total desespero, desconhecemos se provocado mais pelo vislumbre do trabalho que estava pela frente, se por ter de dar razão à experiência do Nuno, mas acreditamos que muito mais pela primeira.

Nem a já referida experiência matrimonial foi grande ajuda. Mesmo evitando troca de olhares ou palavras com mais do que uma sílaba, o “eu avisei-te” não pensado e muito menos verbalizado, soou como os trompetes de Handel na cabeça da Catarina.

Silenciosamente, o Nuno completou a tarefa e desde esse dia nunca mais houve qualquer problema na ordenação dos livros para os leilões, até recebendo preciosas melhorias provenientes da experiência da Catarina.

Do Primeiro Leilão em que o Nuno Participou

Conheça a história do primeiro leilão onde o Nuno participou.

A história da bibliofilia, de certo modo, confunde-se com a história dos leilões. Existentes desde o século XVIII, os catálogos deixaram um conjunto vasto de dados importantes para a história do livro e da bibliofilia e são, ainda hoje, um recurso importante para profissionais e colecionadores. Entre nós, os casos mais emblemáticos e conhecidos são os das bibliotecas de Azevedo-Samodães ou Ameal, mas outros, mais recentes, são referenciados amiúde pelos profissionais.

O Nuno, ainda antes de se juntar a seu Pai, teve o privilégio de participar em alguns leilões. E bem diferentes que eles eram.

O primeiro a que assistiu, forçado, foi em 1991 na Soares e Mendonça. Quase sempre, numa regra não escrita, mas durante anos levada à letra, os leiloeiros informavam-se uns aos outros do seu calendário para que não existissem sobreposições. Dessa vez, no entanto, aconteciam dois leilões em simultâneo. O Pai do Nuno foi a um, o que tinha os títulos mais importantes, deixando ao Nuno a tarefa de licitar meia dúzia de lotes no do Soares e Mendonça.

Chegou cedo, apresentou-se, e lá o sentaram ao lado esquerdo do pregoeiro, o Sr. Luís. Era outro tempo, e apesar dos seus 16 anos, ofereceram-lhe de imediato café, Porto ou Whisky. Ficou-se pelo café.

Observou o cenário. As mesas disposta em U, começavam a encher-se de catálogos, mas poucos permaneciam sentados. A maioria estava de pé, junto às estantes, conversando uns com os outros, muito provavelmente, hoje o sabe, num último esforço para afastar a concorrência. Um assobio persistente ouvia-se por todo o espaço, interrompido quando alguém lhe dirigia a palavra ou para cumprimentar o Sr. Dr. que entretanto entrava na sala. A formalidade era evidente, mas não aquela cerimoniosa de um jantar real. Assemelhava-se mais a um encontro cordial entre adversários que se respeitam e nalguns casos até se admiram, antes da batalha final.

O Sr. Luís sentou-se no púlpito alto no centro da sala e dirigiu-se aos presentes com as palavras costumeiras nos leilões. As condições gerais e especialmente a que se referia à dúvida sobre o último licitante e, mais uma vez, “os Ex.mos Srs que quiserem um Porto ou um cafézinho, façam o favor de o pedir.” Metade dos presentes não ouviu. Permaneceu exactamente onde estava e com quem estava. Só quando se ouviu, “Vamos dar início ao leilão”, um burburinho provocado por cadeiras, canetas e catálogos a abrir iniciou-se tão rápido quanto terminou. O primeiro tiro ia ser dado nos segundos seguintes.

O Nuno sentiu de imediato uma tensão crescente, até aí inexistente e que, percebeu mais tarde, é denominador comum em todas as salas de leilão, especialmente nos bons. Numa sala já cheia de fumo de cigarro e charuto que não mais se apagaram até ao final da noite, as trocas de olhares passaram de cordialidade e admiração para desconfiança e alerta. Segundos depois, o martelo bateu na mesa pela primeira vez e o Sr. Luís anunciou “dez contos e quinhentos para o Sr. Eng.º, não retira.”

Não se recorda se conseguiu comprar alguma coisa para o Pai. Mas lembra-se bem de ter levantado o braço trémulo pela primeira vez e, de imediato, sentir toda a sala trocar olhares entre si como que a perguntar, quem é este miúdo?

Este miúdo, aqui está, mais de 30 anos depois, apaixonado pela sua profissão, emprestando a cada verbete que faz o mesmo carinho e empenho com que tentou fazer o primeiro.

De Como a Catarina passou dos “Patinhas” ao Eça

A história desta semana que começa em 1993 quando o Nuno e a Catarina começaram o seu relacionamento.

A Catarina sempre apreciou mais os bicos de Bunsen ou as placas de Petri que a literatura, com excepção daqueles pequenos livrinhos, com o Tio Patinhas, Pato Donald, Mickey e Gastão como protagonistas, com os quais gastava muitas horas de ócio.

Ao longo de um ou dois anos o Nuno, sem qualquer sucesso, diga-se, tentou que a Catarina entrasse noutro universo, maior, mais rico e mais desafiante. Nada contra os “Patinhas”, que também os lia, mas queria que a mulher da sua vida entrasse mais no seu mundo e houvesse mais outra coisa em comum.

Um dia, cansado de tentar livros e livrinhos, num acto de puro desespero, propôs-lhe um último desafio que, se se frustrasse, nunca mais a aborreceria com o assunto. Ousado, o Nuno pediu à Catarina que abrisse Os Maias com o compromisso de o ler até um capítulo depois da descrição do Ramalhete. Caso, lidas essas páginas, a Catarina não quisesse continuar, nunca mais o assunto seria assunto. Ela aceitou, quer-nos parecer mais para calar o Nuno definitivamente que para superar o desafio.

Não sem um quê de superstição, o Nuno nem sequer indagava como estava a leitura, deixando o tempo passar. No fim de semana seguinte, sem programa, enquanto permaneciam desinteressados de tudo na pequena sala de estar da casa dos pais, a Catarina tira o volume vermelho da edição dos Livros do Brasil da mochila e abre-o bem para lá de meio. A pergunta que o Nuno estava prestes a fazer guardou-se bem no fundo do esquecimento, sorrindo para dentro, calado e satisfeito.

Algum tempo depois, a Catarina, desembaraçada, perguntou ao Nuno: — Que achaste da Relíquia?… E ainda hoje, a Catarina regressa ao Eça de quando em vez, bem mais que o Nuno.