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Epístolas de Cataldo

As razões porque nos deixamos deslumbrar por uma profissão no início do desempenho de qualquer função com ela relacionada são sempre muitas. Mas creio que a escolha de uma profissão passa muito – se não decisivamente – pelo desenvolvimento de um universo imaginário que nos fascina e nos absorve. Desejar chegar ao ponto de tornar esse imaginário uma realidade é um motor que nos faz superar desafios ou adversidades e a continuar um caminho que, esperamos, um dia nos leve ao paraíso imaginado.

O universo que envolve a profissão que abracei há 25 anos também tem os seus mundos extraordinários de livros que nunca poderemos folhear, mas que desejamos ardentemente poder um dia fazê-lo. Com pouco mais de 17 anos, claro que os incunábulos seriam o clímax desse universo imaginário. Poder sentir o papel com mais de 500 anos impresso com esforço por verdadeiros artesãos, cheirar o acumular de pó como se dele se pudesse ler estratigraficamente os perfumes que nele repousaram, conhecer-lhe os defeitos como que querendo escrever-lhe a cronologia dos momentos mais marcantes da sua existência ou abraçar a encadernação como a sua melhor amiga que guardou aqueles detalhes que fazem a sua biografia um texto notável, eram, e de alguma maneira ainda são, um dos mais profundos desejos de um jovem aprendiz.

Essa oportunidade acabou por acontecer em várias ocasiões, a primeira das quais num dos primeiros leilões que organizei, e algumas até importantes como a Vita Christi de Ludolfo da Saxónia ainda a trabalhar com meu Pai ou um fragmento do Pentateuco impresso em Lisboa, 1489. Porventura por circunstâncias invisíveis ao sonho juvenil, nenhuma teve o peso com que pude catalogar um bonito exemplar (ainda que com defeitos) das Cartas de Cataldo Sículo.

Fica aqui a ficha bibliográfica completa com os comentários publicados no catálogo do leilão Biblioteca Particular, parte V, lote 32.

CATALDO SÍCULO ou CATALDO PARÍSIO

EPISTOLE et Orationes. Lisboa: Valentim Fernandes, 1500, 21 de Fevereiro. a-h6, i8; [56] ff.; 300 mm.

PRIMEIRA EDIÇÃO deste precioso e importante incunábulo português. “Este precioso incunábulo é, certamente, um dos livros mais raros da nossa Bibliotheca” [D. Manuel, v. 2, p. 51]; “una raritá bibliografica e costituiscono uno dei più preziozi cimeli della tipografia portoguese del secolo XV” [Guido Battelli, p. 4]

A biografia de Cataldo não é de fácil elaboração. Segundo Costa Ramalho [cf. Epistolæ…, Univ. Coimbra, 1988] o humanista é natural de Sciacca na Sicilia, tendo nascido por volta do ano de 1455. Graduou-se em Direito em Ferrara em Fevereiro de 1484 e chegou a Portugal no ano de 1485 ou 1486, a convite de D. João II. Foi entre nós que “o seu contributo para a introdução do humanismo e para a actualização do nosso País com a cultura literária da Europa mais adiantada, a partir da fonte que era então a Itália, o seu papel na europeização cultural dos portugueses foi de grande significado” [Ramalho, p. 11].

Chegou a Portugal por convite de D. João II com a tarefa de educar o filho D. Jorge. Não restringindo a sua actuação a esse discípulo, ensinou, directamente ou por correspondência, variadíssimos nobres da corte, entre eles D. Manuel enquanto Duque de Beja [cf. Bibliografia Geral, p. XLVII]. Tal o seu trabalho como formador que Carolina Michaelis de Vasconcelos lhe dá o título de “præceptor Portugaliæ” [cf. Notas Vicentinas, p. 28].

Neste ano de 1500, Valentim Fernandes fez sair mais duas obras do autor, ‘Poemata‘ e ‘Visiones’ [cf. Bibliografia Geral n. 27 e 28], mas é este seu Epistolæ a maior e mais interessante. A obra contém várias cartas tanto a D. João II como a D. Manuel I, bem como às principais figuras da nobreza, “cheias de curiosos informes sobre a vida portuguesa naquele período do Renascimento” [Bibliografia Geral, p. XLVII]. E é também neste livro que se publica uma celebrada carta do Conde de Alcoutim a Valentim Fernandes.

Sobre o valor do epistolário de Cataldo escreve Guido Battelli: “Se in giorno qualcuno penserá a ripubblicare l’epistolario di lui, quanta luce sulle relazioni culturali dell’Italia col Portogallo! Egli é in corrispondenza con tutti gli uomini più colti del suo tempo; e noi possiamo facilmente immaginarci che gioia e che festa ognuna delle lettere da lui ricevute dall’Italia acranno destato a Corte” [p. 11].

Saiu uma segunda parte das cartas de Cataldo, também por Valentim Fernandes por volta do ano de 1513.

RARÍSSIMO, valioso e muito importante.

Bibliografia: Hain, 4678; Haebler, 136; D. Manuel, 274 [com frontispício e último fólio facsimilado] e v. 2, pp. 51-52; Bibliografia Geral, v. 1, 26 e pp. XLV-LI; Biblios, v. 5, c.14; BATTELLI, Guido, Cataldo Siculo, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930; SICULO; Cataldo Parisio, Epistolæ et Orationes, Edição fac-similada, introdução de Américo da Costa Ramalho, Coimbra, Universidade, 1988